O caracol queria comer a couve, mas a chuva não queria passar. Decidiu então ficar onde estava, protegido sob um pé de rúcula. Adormeceu. Quando a chuva passou e ele despertou, decidiu experimentar um pouco da rúcula. Mas o agricultor não quis colaborar: quando estava chegando perto da verdura, o caracol a viu se elevar subitamente num supetão que chegou a causar para ele um terremoto. O caracol assustou tanto que sua vontade era se esconder e ficar imóvel por horas ali na terra, mas a fome não quis deixar.
Chegando na feira, cada verdura foi brevemente lavada numa bacia com água. O banho poderia ter sido suficiente para expulsar o caracol, mas a dona da banca não quis perder mais de um segundo com cada verdura, e o caracol permaneceu grudado na alface dele.
Expostos na feira, o caracol e a alface ficariam por horas. Parece que ninguém queria comprar aquela alface. O caracol permanecia discreto e calado na raiz. Duas ou três pessoas o notaram, mas não quiseram fazer nada a respeito. A dona da banca da feira resolveu abaixar os preços, pois não queria voltar com alface para casa. Finalmente, a alface foi comprada. Ela e o caracol foram metidos numa sacola e levados para a casa de alguém.
Chegando em casa, a pessoa que comprou a alface decidiu que não queria comer alface naquele dia, então depositou-a na geladeira. Lá ficaram ela e o caracol até o dia seguinte. O caracol não entendia muito bem a situação, ele só sabia que queria sair dali, mas a geladeira não queria abrir. O corpo do caracol estava frio, e sua alma estava congelando. Ele rezava como podia, mas Deus não queria atender.
No dia seguinte, à noite, o cozinheiro retirou a alface da geladeira e colocou-a de molho em água misturada a um produto químico que teria matado o caracol, mas o cozinheiro não quis colocar a quantidade suficiente. Tonto, o caracol saiu da água e começou a vagar desorientado pela cozinha. O cozinheiro o viu. O cozinheiro pegou-o de um jeito inadvertidamente desajeitado demais e o colocou para fora, no parapeito da janela, pois não o quis matar.
O caracol queria sair dali e caminhar para ver se encontrava de novo a horta. Mas seus músculos não quiseram obedecer. Estavam liquefeitos.
A manhã chegou. Chegaram os pássaros. Ao meio-dia, o dia ardia, e a alma do caracol ainda habitava sua nublada consciência. Os pássaros não o quiseram comer. Mas o sol não quis perdoar. O caracol evaporou.
Seu casco permanece sólido no mesmo lugar pois ninguém o quis remover.
Breve interpretação do conto
"O Caracol" de Raphael Samaniego é um conto profundo que tece um relato sobre a vida, destino e a interação constante entre vontade, escolha e acaso. Aqui, a figura do caracol representa a fragilidade da vida e a constante busca por sobrevivência, enquanto os elementos externos mostram a indiferença e o capricho do destino. Vamos analisar algumas das principais temáticas e técnicas literárias do conto:
- Vontade vs. Acaso: O leitmotiv do conto é a dualidade entre a vontade do caracol e os acontecimentos externos. A frase "não quis" é repetida diversas vezes ao longo do texto, aludindo à natureza incontrolável do destino. O caracol tem seus próprios desejos e necessidades, mas é constantemente frustrado por circunstâncias fora de seu controle.
- Fragilidade da Vida: O caracol é vulnerável e suas ações são frequentemente frustradas por forças externas. O conto ilustra a ideia de que, independentemente de quão determinado ou resiliente possamos ser, existem forças externas que podem facilmente superar nossos esforços.
- Indiferença do Mundo: O mundo, representado pelos outros personagens, frequentemente age de forma indiferente ao caracol. A dona da banca, o cozinheiro e até mesmo a natureza (chuva e sol) demonstram uma falta de consideração pelo bem-estar do caracol.
- A Jornada da Vida: O caracol passa por várias etapas da vida, enfrentando perigos e desafios em cada virada. Sua jornada é uma representação da vida humana, onde enfrentamos desafios, somos afetados por forças externas e, no final, enfrentamos a inevitabilidade da morte.
- Estilo de Escrita: Samaniego emprega um estilo de escrita que combina a crueza da realidade com momentos líricos. Isso é evidente na descrição da situação do caracol, especialmente na linha "sua alma estava congelando" e "a alma do caracol ainda habitava sua nublada consciência".
- Final Simbólico: A morte do caracol sob o ardente sol é uma representação do ciclo da vida. Mesmo depois de sua morte, o casco do caracol permanece como um testemunho de sua existência, ignorado e esquecido pelo mundo ao seu redor.